Uma pequena canção de outono

OK, estamos no inverno, eu sei. “Pequenas canções de outono” é o título de um dos contos do livro “Fichas de vitrola & outros contos”, de Jaime Prado Gouvêa, alvo da minha próxima coluna no Digestivo Cultural. Composto por cinco textos, “Pequenas canções de outono” seria uma espécie de “história feita de sub-histórias”, porque os cinco textos que compõem o principal podem ser lidos separadamente sem nenhuma perda de sentido. O conto inteiro é muito bom, mas o segundo texto me emocionou bastante. E é ele que reproduzo abaixo, com a autorização do autor, claro.

2
Perto das quatro horas da madrugada, o homem entrou no apartamento e fechou a porta com o cuidado exagerado de quem não quer que o pai acorde e veja que está bêbado. Isso porque aprendera, em todos aqueles anos em que viveram ali sozinhos, que a vida chegava a ser suportável desde que evitasse um encontro a essas horas, no estado em que se encontrava, pois a cena era sempre a mesma: o pai fazendo cara de quem já desistiu e ele entre o remorso e a raiva, com vontade de gritar e chorar ao mesmo tempo, pois o silêncio do outro era uma acusação indefensável.

Dessa vez, no entanto, o pai não surgiu na porta do quarto, nem acendeu a luz para olhá-lo entre as pálpebras amarrotadas. O homem se voltou para trancar a porta e, com um salto rápido para o lado, evitou esbarrar numa cadeira mal colocada. Parou para respirar, satisfeito de não ter feito barulho nenhum, mas se surpreendeu ao ver que não tinha adiantado nada seu esforço, pois o vulto do pai estava ali, como sempre, mas reclinado sobre a mesa da copa, como se tivesse dormido enquanto o esperava.

Esperou que ele se mexesse, mas o outro continuava imóvel. Pensou que deveria acordá-lo, que deveria dizer a ele para ir dormir na cama, mas desistiu disso ao acender a luz. Desistiu de tudo ao ver o rosto dele enfiado num prato de sopa, a sopa de letrinhas de macarrão que gostava de dizer que preferia por ser o filho um escritor. E entendeu logo, ao ver o pai com o nariz e a boca dentro do prato e com os olhos abertos em sua direção, que ele tinha morrido havia bastante tempo, pois a própria sopa criara em sua superfície uma crosta de gordura já bem espessa.

Ficou parado, pensando no que deveria fazer, e entendeu que o que realmente o perturbava eram os olhos abertos do pai, os mesmos olhos de quem, certa vez, entre muitos outros conselhos, afirmara que a última coisa que se poderia fazer por um homem era fechar seus olhos logo que morresse, pois acreditava que o verdadeiro descanso só chega quando se cortam todas as ligações com o mundo exterior e a luz desaparece para sempre. Pensou que deveria fazer exatamente isso – fechar os olhos dele – mas, quando levantou o rosto do pai, notou que o pescoço começava a se enrijecer e que algumas letrinhas da sopa estavam grudadas em seus cabelos.

Limpou-os o melhor que pôde com seu lenço fino, azul-claro, e, meio sem jeito, conseguiu arrastar o corpo do pai até a poltrona, pois achou que se ele ficasse naquela posição, sentado, pela manhã teriam de ser quebradas suas juntas para que pudesse ser colocado no caixão. Esticou o corpo do pai na poltrona e fechou-lhe os olhos com certa cerimônia, lembrando-se de que era esse o único gesto de caridade que poderia fazer naquele momento. Depois sentou-se ao lado do corpo na poltrona, ainda com o lenço cheio de letrinhas na mão, e viu que as letras, ali, não conseguiam fazer sentido algum. Mesmo assim sentiu-se de certa forma aliviado, pensando que, afinal, pela primeira vez em muitos anos ele tinha conseguido fazer alguma coisa por aquele homem.

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