Quantas vezes você se perguntou se esta ou aquela lembrança de infância aconteceu mesmo ou é invenção de sua mente? Não sei quanto a vocês, mas volta e meia isso acontece comigo. E é divertido, porque eu preciso consultar as minhas “fontes”, ou seja, meus pais, para saber se estou devaneando ou lembrando de algo que realmente aconteceu. Nas vezes em que não houve confirmação do que, para mim, foi fato, costumo retrucar que eles não lembram do ocorrido. Afinal, se tudo não passar de invenção ou confusão, que graça tem?
É mais ou menos nisso que “Duelo” (ed. Companhia das Letras, 136 págs., R$ 32,00), de David Grossman, se apoia. Nesse livro, o autor israelense conta uma experiência que teve quando criança. Mas, como ele não tem certeza absoluta a respeito de alguns detalhes, foi necessário se valer da ficção para preenchê-los.
Quando tinha 12 anos, em 1966, David presenciou algo no mínimo inusitado: dois senhores prestes a se enfrentar em um duelo. Daqueles de faroeste em que um fica de costas para o outro, dão alguns passos em direções opostas e, depois, dão um giro de 180 graus e trocam tiros. Para explicar o motivo, é preciso contar um pouco da história do livro.
No início do ano letivo de 1966, o colégio em que David estudava quis incentivar os alunos a serem voluntários em alguma coisa. Uma das opções era a de ajudar e fazer amizade com um idoso, e foi esta a que Grossman escolheu. Ele ficou amigo do senhor Rosenthal, que em sua juventude havia sido fotógrafo e tivera um relacionamento com a pintora Edith Strauss – que não chegou a durar muito por conta do temperamento instável da artista. Mas, apesar de breve, o amor entre eles foi intenso, e, antes de ir morar na Inglaterra, Edith deixou com Rosenthal uma das últimas pinturas que ela fez, um autorretrato de seus olhos.
Acontece que ela deixou uma outra pintura, de sua boca, com Rudy Schwartz, com quem a artista também se envolveu amorosamente. Esses trabalhos não eram conhecidos pelos estudiosos da obra de Edith e, portanto, tinha valor inestimável. Tanto Rosenthal como Schwartz guardavam as pinturas como se fossem uma parte do corpo deles.
E agora chegamos ao motivo do duelo: o retrato da boca é roubado e Rudy acusa o senhor Rosenthal de tê-lo roubado. Escondido embaixo da cama deste último, David presencia toda a discussão, perplexo. E, mesmo sem ter entendido muita coisa a princípio – durante o livro o garoto toma conhecimento do passado de todos os envolvidos na história -, David percebe que tem uma missão a fazer: evitar que seu melhor amigo corra risco de morte.
Uma das coisas mais legais de “Duelo” são as revelações pessoais que Grossman faz: o fato de ser um pouco distante dos seus colegas, de se sentir um velho mesmo tendo 12 anos e como os seus pais lidaram com isso, preocupados que eram com o filho. O escritor que ele viria a ser já estava ali, no jovem garoto que ele foi. E as experiências que ele teve serviram – e servem até hoje – de alimento para a sua ficção. Se o que ele conta no livro realmente aconteceu ou não, da forma que ele conta, não importa muito. A história é tão boa que isso acaba sendo deixado de lado.
Apesar de curtinho, menos de 130 páginas, “Duelo” é um livro que nos faz pensar no que fomos e no que nos tornamos. Além disso, faz lembrar que, não demora muito, estaremos com 60, 70 anos, e que a sociedade parece “esquecer” das pessoas idosas. E se hoje nós meio que as ignoramos, como é que, adiante, poderemos reclamar do que nossos filhos e netos poderão fazer conosco? É bom pensar nisso enquanto há tempo.