Em determinado ponto do romance “Diário de um ano ruim”, de J.M. Coetzee, o narrador-protagonista diz que “o padrão ao qual todo romancista sério deve aspirar, mesmo sem a menor chance de chegar lá” é “o padrão do mestre Tolstói de um lado e do mestre Doistoiévski do outro”.
Anos atrás, quando comecei a escrever resenhas de livros e um ou outro artigo sobre literatura, precisava de referências, precisava ter alguém que me inspirasse não apenas intelectualmente, mas também eticamente, “humanamente”, digamos assim.
Depois de algum tempo fazendo leituras errantes, conheci George Orwell. Apesar de não ter lido muitos livros seus – na verdade, somente um de cabo a rabo, e vários ensaios aleatórios -, mais que uma referência, Orwell se tornou, para mim, uma espécie de troféu a ser conquistado – não ele, claro, mas seu estilo, sua qualidade, sua genialidade.
A partir do momento em que conheci seus textos leves e paradoxalmente profundos, aparentemente espontâneos mas ao mesmo tempo precisos, passei a ter George Orwell como um guia, como um “lugar” onde eu deveria chegar.
Desnecessário dizer que tinha – e continuo tendo – consciência de que jamais chegarei a escrever como ele. Não tenho e nunca terei seu talento. Orwell, ao contrário do que o jornalista e escritor norte-americano Lionel Trilling (1905-1975) defende no brilhante ensaio publicado como prefácio do livro “Como morrem os pobres e outros ensaios”, editado recentemente pela Companhia das Letras, é um gênio, uma qualidade que estou há anos-luz de ter. Mas isso não me impedia – e não me impede – de tentar escrever como Orwell. Isso não significa plagiar, copiar, imitar. Significa tê-lo como exemplo; significa ser sincero, não ser pedante, ser simples, direto, não fazer rodeios para dizer algo que merece ser dito, por mais que soe enérgico, rigoroso.
Um exemplo: em um dos artigos de “Literatura e política” (Jorge Zahar, 2006), Orwell diz: “(…) No caos em que vivemos, mesmo as razões prudentes a favor da decência comum estão sendo esquecidas. A política, interna e externa, talvez não seja mais imoral do que sempre foi, mas o que é novo é a crescente submissão das pessoas comuns às doutrinas de conveniência, a insensibilidade da opinião pública em face aos crimes e sofrimentos mais atrozes, e a memória cega que permite que assassinos maculados pelo sangue se transformem, da noite para o dia, em benfeitores públicos (…)”.
É a isso que Lionel Trilling se refere quando diz, em seu texto (qualificado por mim de “brilhante” por sua qualidade, mas não concordo com tudo o que ele diz), que Orwell “contou a verdade, e a contou de forma exemplar, tranquilamente, de modo simples, com a devida advertência ao leitor de que era apenas a verdade de um homem. Não usou jargão político e não fez recriminações. Não fez nenhum esforço para mostrar que seu coração estava no lugar direito, ou no lugar esquerdo. Não estava interessado em saber onde pudessem achar que seu coração estava, pois sabia onde ele estava. Estava interessado em contar a verdade”.
Nesse trecho, Trilling se refere mais especificamente ao livro “Homage to Catalonia” (no Brasil, “Lutando na Espanha”; Globo, 2006), no qual Orwell relata suas experiências de quando participou ativamente da Guerra Civil Espanhola, lutando contra o franquismo, sendo inclusive gravemente ferido com um tiro no pescoço.
Mas suas palavras podem ser aplicadas a toda a obra de Orwell, que não é perfeito – assim como todo ser humano, ele também cometeu erros, equívocos e injustiças -, mas é – e continua sendo – um gênio, e um exemplo a ser seguido.
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