* ATENÇÃO: este texto contém spoilers.
O grande interesse (falta de assunto/criatividade?) dos cineastas brasileiros em retratar na tela grande a miséria e a violência que assolam o Brasil já virou motivo até de piada, como nesta “reportagem” do The e-piauí Herald.
Filmes que mostram a vida como ela é – só para fazer lembrar de Nelson Rodrigues – são mais que necessários, mas parece que nossos cineastas vêm exagerando na exploração dos temas citados no parágrafo anterior. Felizmente, alguns filmes têm fugido a essa regra. Alguns são extremamente malsucedidos, como a tentativa de comédia “A casa da mãe joana“, mas outros são justamente o contrário: filmes de beleza e qualidade quase raras.
“O contador de histórias” (2009), dirigido por Luiz Villaça, é um desses. O filme conta a história do hoje pedagogo Roberto Carlos Ramos, considerado um dos melhores contadores de história do mundo. Aos 6 anos de idade Roberto foi levado, por sua mãe, para viver na Febem de Belo Horizonte. Naquela época, como mostra uma cena do filme, o governo fazia propaganda da Febem na televisão, mostrando uma instituição preocupada em dar educação, alimentação e dignidade a muitas crianças. Mas o que a TV mostrava não correspondia ao que acontecia na vida real. Muito pelo contrário.
Em vez de educação, descaso; em vez de atenção, violência – por parte de outros internos mas também de funcionários da própria Febem. Roberto viveu dos 6 aos 13 anos na instituição, lidando com todo o tipo de garotos, bons e maus. E, quando os maus exemplos são mais constantes e presentes, segui-los é quase uma regra. E foi isso o que aconteceu com o garoto.
No seu prontuário ficaram registradas mais de 100 fugas do internato. Antes mesmo de entrar na adolescência Roberto realizou furtos e usou drogas nas ruas de Belo Horizonte. Mas, para a sua sorte, uma mulher, uma pedagoga de coração e persistência inestimáveis cruzou o seu caminho.
Trata-se de Marguerit Duvas, uma francesa que estava no Brasil fazendo uma pesquisa. Ela ficou sensibilizada com a história de Roberto e ignorou o rótulo de “irrecuperável” que fora dado a ele pela Febem: decidiu que iria tentar de alguma forma ajudar o garoto. A história, como ficou explícito parágrafos atrás, tem um final feliz, mas nada que faça o eventual telespectador desistir de assistir ao filme por já saber como ele vai acabar.
O roteiro, que ficou a cargo de Mauricio Arruda, José Roberto Torero, Mariana Veríssimo e Luiz Villaça, é muito bom, quase irrepreensível, assim como as atuações da atriz que interpreta Marguerit (Maria de Medeiros) e principalmente do ator que faz o papel de Roberto aos 13 anos (Paulinho Mendes). (Preciso citar, também, a participação curta mas especialíssima do ator Chico Diaz, um dos melhores profissionais de sua geração. Sua performance é qualquer coisa perto da perfeição.) As saídas encontradas para não deixar o filme “pesado” ou cruel demais só engrandecem o projeto. Algumas cenas são retratadas de maneira bastante fantasiosa, como um trecho logo no início em que Roberto, com cerca de 5 anos de idade, aparece empinando pipas e a voz em off do próprio Roberto, já com mais de 40 anos, diz que ele “via a hora de minha rua sair voando, de tanta pipa que prendi nos fios dos postes”.
Aliás, a voz em off ser a do próprio Roberto foi uma grande sacada da produção. O talento dele como orador fica visível – ou “audível”, melhor dizendo – no filme. E, ao fim a película, Roberto Carlos Ramos aparece em carne e osso, contando uma história para uma plateia atenta e concentrada. Uma bela homenagem a todos os contadores de histórias natos que existem.
Apesar de ter um enredo dramático que se transforma em feliz, “O contador de histórias” poderia se tornar um filme pesado nas mãos de outro diretor ou de outros roteiristas. Mas até mesmo os palavrões, que são utilizados desordenadamente na maioria das produções tupiniquins, são usados com parcimônia, nunca de maneira exagerada. Uma cena em particular, em que Roberto e um colega de internato trocam palavrões entre si para se mostrarem “durões” perante os outros garotos, chega a ser engraçadíssima.
E é aí que está o brilho do filme: ao mesclar o drama com doses de ternura, humor e fantasia Luiz Villaça e equipe realizaram um dos melhores filmes que assisti nos últimos anos. Um exemplo de que ainda há muitas boas histórias para serem contadas.
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