Em abril de 2005 o jornalista Humberto Werneck imprimiu, em uma tiragem curtinha, de 500 exemplares, seu único livro de ficção até o momento: “Pequenos fantasmas”, de contos. O livro também é curto, tem 117 páginas. Nele, estão 10 histórias curtas que Humberto escreveu ali entre seus 20 e 20 e poucos anos. Apenas um dos contos, o último, intitulado “A invasão”, foi escrito depois dos 30, numa “brevíssima recaída”, como diz o autor.
Quase três anos depois, em fevereiro de 2008, recebi o “Pequenos fantasmas” nº 489, devidamente assinado e com dedicatória do autor. Pensei que iria cair no livro de imediato, mas não foi o que aconteceu. Na época eu estava – como sempre estou – com uma montanha de leituras pendentes, sendo uma delas do livro “Fichas de vitrola & outros contos”, de Jaime Prado Gouvêa, amigo de infância de Humberto. Pensei comigo: “não posso ler o livro do Humberto antes do livro do Jaime, seria uma grande sacanagem com o Jaime”. Então fiz um acerto comigo mesmo: só leria “Pequenos fantasmas” depois de ler “Fichas de vitrola”.
Há alguns meses não apenas li, mas resenhei o livro do Jaime e fiz uma pequena entrevista com ele – o material foi publicado no Digestivo. Era a ocasião então de encarar o livro do Humberto. Mas não foi o que aconteceu. Por uma série de fatores, não pude fazer isso. Na verdade, devo confessar, havia de minha parte um certo receio. Algo que de certa forma me fez demorar de ler o “Fichas de vitrola”. O receio de os livros não serem bons. Porque a minha expectativa era enorme, tanto para um caso quanto para o outro. Eu queria que os livros fossem bons. Quando leio livros de amigos ou pessoas que admiro e respeito, tenho essa coisas de desejar que a obra tenha muita qualidade. E aí, se ela não tem, fica aquela ponta de decepção. Além disso, há o risco de a pessoa perguntar: “o que você achou do meu livro?”. Se você não gostar e dizer que não gostou, há uma grande chance de a pessoa simplesmente deixar de falar com você, ficar ressentida, essas coisas. Falo porque sei: já aconteceu comigo.
Resultado: só vim ler o “Pequenos fantasmas” agora, há menos de uma semana. E eis que me deparo com um belo livro.
Os dois primeiros contos, “Menino no quintal” e “Vagalume”, lembram um pouco o Fernando Sabino do início de “O encontro marcado”. Eis os inícios de ambos, respectivamente: “Grudado no muro, braços envolvendo os joelhos, o olhar fincado no minuto que pingava da torneira – o menino quieto, se pensando. Horas e horas longe de tudo. O quintal o que era?”; “Os vagalumes moravam perto da noite, na beira do rio. Pelas seis horas brotavam da neblina e picotavam a sombra num vôo luminoso. O menino havia de esperar, encolhido na moita, para ter o vagalume maior de todos”.
A infância, aliás, é também tema presente no terceiro conto, “Oito anos”, no qual um garoto é acordado por sua tia no meio da madrugada. O garotinho levanta sonolento, fica sem saber o porquê de acordar àquela hora, mas aos poucos vai sendo revelado, para o leitor, o motivo. Ele, Dudu, fica sabendo depois, já perto do fim da história. O conto termina com a reação inusitada, porém sincera, do garoto.
A partir daí os protagonistas envelhecem. Em “Acontecimento de família”, um pai sofre com a vergonha de saber – não só ele, mas toda a vizinhança – que sua filha não é mais virgem; o protagonista de “O condenado” é um homem atormentado por uma culpa que o deixa refém de si mesmo e de seus medos; “Febre aos 39 graus” narra um instante na vida de um homem que, depois de anos de fidelidade à esposa, se rende à pressão dos amigos e sai para uma farra – e então se rende aos encantos de uma moça…; em “Quarta-feira” vemos um condenado – este de verdade, porque está na cadeia – não querer enxergar o óbvio: está perdendo sua esposa para outro (ou para a sua ausência); “Do terceiro andar” tem como protagonista o bedel de um colégio interno para meninas, Boaventura Mendes, que tem como prazer assistir às aulas de ginástica das garotas; a morte de um homem e seus desdobramentos – velório, enterro e tudo o que eles acarretam – é o mote de “O doloroso dever”, penúltimo conto do livro; que termina com o fantástico em todos os sentidos “A invasão”, cujo enredo é o seguinte: depois de passar anos morando em hotéis, um homem decide, depois de aposentar-se, ir morar em uma casa. Ao começar a mobiliá-la, coisas estranhas acontecem, como ele receber móveis exatamente iguais aos que desejava e que iria pedir, mas sem tê-los encomendado.
Escritos de maneira peculiar, um tanto quanto rebuscada, mas não muito, e sem pedantismo, os contos de “Pequenos fantasmas” têm uma doçura, uma leveza e um amargor indeléveis e inconfundíveis. Quem conhece os livros, as matérias e as crônicas de Humberto Werneck percebe que ali pelos seus 20 e poucos anos ele já possuía o que muitos autores levam uma vida inteira procurando e não encontram: estilo.
Na nota introdutória ao livro, Humberto explica que seu título seria “Primeiros movimentos”, caso não tivesse o autor retirado seu original da fila de publicação da Imprensa Publicações, órgão do governo de Minas Gerais também responsável pela edição do Suplemento Literário de Minas Gerais, onde Humberto trabalhou durante algum tempo (importante dizer que um dos maiores incentivadores de Humberto foi ninguém mais ninguém menos que o escritor Murilo Rubião). Mas um livro pronto e não publicado incomoda – talvez seja esse o maior tormento de um escritor, maior ainda que o de querer escrever uma obra e não conseguir. Na introdução, Humberto diz: “A passagem dos anos não atenuou a desconfortável sensação de que, tendo escrito, faltara completar o gesto, publicando aqueles contos de juventude, até como forma de livrar-se deles – para evitar que, na gaveta, ou mesmo rasgados, virassem fantasmas, pequenos fantasmas.”.
É bem provável que, hoje, as 500 cópias de “Pequenos fantasmas” estejam devidamente bem guardadas pelos seus 500 (ou 499, caso o autor tenha ficado com uma delas) leitores. É envaidecedor poder dizer que sou um dos felizardos, e certamente assim pensam todos os que foram agraciados com esta honraria, a de ter um exemplar desta pequena joia literária. Mas é um tanto frustrante saber que esses contos não serão lidos por um público maior, que este pequeno grande livro – acho que já usei esta expressão em alguma outra resenha, mas enfim – não poderá ser encontrado em livrarias. Fica aqui publicamente expresso meu desejo de que Humberto Werneck solte mais de seus fantasmas por aí – se ele assim o desejar, claro. E, caso isso aconteça, não se assustem: o único assombrado por esses fantasmas era o autor.
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