Em um ano recheado de bons livros, sendo um dos mais importantes “O escritor premiado e outros contos”, de um certo Rafael Rodrigues, 2011 poderia muito bem encerrar por agora, ao menos no que se refere a livros publicados, com o lançamento de “O Rio é tão longe” (Companhia das Letras, 424 págs., R$ 49,00), que traz cartas do escritor mineiro Otto Lara Resende ao seu amigo também escritor e também mineiro Fernando Sabino (1923-2004).
Livro que, a propósito, custou a sair, tendo em vista que Otto faleceu em 1992, e que em 2002 Fernando Sabino publicou suas missivas a Otto, Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos (“Cartas na mesa”, ed. Record). Juntos eles formaram um quarteto que ficou conhecido como “Os quatro mineiros do apocalipse”. Tanto pelo que aprontaram em Belo Horizonte quando jovens – e uma amostra disso está no romance “O encontro marcado”, um dos melhores livros brasileiros do século passado – quanto pelo que fizeram para a literatura brasileira, escritores de talento inquestionável que foram.
Mas antes tarde do que nunca. Sem contar que o atraso foi providencial: coube a Humberto Werneck, jornalista e escritor talentosíssimo – e, vejam só, também mineiro! – organizar o livro. Algo que, anos atrás, talvez não fosse possível, devido a outros compromissos de Werneck, que, só para dar um exemplo, se dedicou por um bom tempo à escritura da belíssima biografia de Jayme Ovalle, “O santo sujo” – que, é bom lembrar, conta com a “participação” dos quatro mineiros. Principalmente com a de Sabino, que conviveu por mais tempo com Ovalle e chegou a transformá-lo em personagem de “O encontro marcado” (o velho Germano).
É bom dizer que não li, ainda, “O Rio é tão longe”. Mas estamos falando aqui de um livro cuja importância e qualidade independe de sua leitura. Leitura essa que, aliás, é quase obrigatória. Contudo, asseguro-lhes de que meu exemplar já está garantidinho, como diria o Otto, e mal vejo a hora de tê-lo em mãos.
Nelson Rodrigues, muito amigo de Otto, disse certa vez que deveriam colocar um taquígrafo atrás dele, para que fossem registradas todas as suas frases geniais, que seriam depois vendidas em uma loja. Essa anedota do Nelson não era uma rasgação de seda gratuita. Otto, em suas crônicas – e também em suas cartas -, se mostra um escritor excepcional, de uma simplicidade – nas crônicas -, uma sinceridade e uma agudeza de sentimento – nas cartas – que não é lá muito comum na literatura brasileira.
Pois que vem em boa hora este “O Rio é tão longe”, que, junto com uma nova edição do volume de crônicas “Bom dia para nascer”, também sob os cuidados de Humberto Werneck, e que traz mais de setenta crônicas não reunidas na edição anterior, de 1993, organizada por Matinas Suzuki Jr., realça, de uma só vez, as figuras de Otto e de Fernando Sabino, dois dos nossos maiores escritores. Os dois títulos inauguram a coleção Otto Lara Resende, organizada pelo já citado Humberto, sem dúvida alguma a pessoa mais indicada para fazer tal trabalho. Além de ter conhecido e convivido com ambos, é dele um livro fundamental para entender a geração de autores mineiros nascidos ali mais ou menos pelos anos 1920, “O desatino da rapaziada”, também publicado pela Companhia das Letras.
Encerro este post com o “Lembrete do anjo para Fernando Sabino”, abertura de “O Rio é tão longe” que figura também em sua capa, e me deixa arrepiado toda vez que leio:
“Fernando Sabino, o Demônio é uma árvore frondosa cheia
de frutos maduros e doces. O Demônio dá sombra aos caminhantes
fatigados, o Demônio, Fernando Sabino, dessedenta os
que têm sede e dá de comer a quem tem fome. O Demônio é
uma romã fresca e saborosa depois do sol e do cansaço. Deus,
Fernando Sabino, é uma galhada seca e magra, onde os homens
sangram as mãos para nada. Uma caveira no meio do pé da estrada
é Deus, Fernando Sabino. Deus é um osso duro de roer.
Deus, Fernando Sabino, é uma fieira de dentes amarelos enfiados
como em colar e passado no colo de um esqueleto esquecido
de si mesmo. Fernando Sabino, o Demônio é uma macieira, o
Demônio é alto, louro, simpático, tem olhos azuis e fuma cigarros
americanos. Fernando Sabino, o Demônio tem poltronas,
Fernando Sabino. O Demônio toma chá com torradas e tem
varandas no flanco esquerdo e no flanco direito. Deus é cáustico
e sem alpendre. Deus é uma caveira: perigo!
Otto Lara Resende
Rio, 24 de outubro de 1954
Noite“
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