Anteontem, falei dos idiotas. Sinto, porém, que disse muito pouco, quase nada. O assunto foi apenas insinuado, e repito: – o assunto está diante de nós como uma sibéria imensa, à espera de que outros a invadam, e a ocupem, e a fertilizem. E quem não percebeu a invasão dos idiotas não entenderá, jamais, o Brasil dos nossos dias. …O trágico da nossa época ou, melhor dizendo, do Brasil atual, é que o idiota mudou até fisicamente. Não faz apenas o curso primário, como no passado. Estuda, forma-se, lê, sabe. Põe os melhores ternos, as melhores gravatas, os sapatos mais impecáveis. Nas recepções do Itamaraty, as casacas vestem os idiotas. E mais: – eles têm as melhores mulheres e usam mais condecorações do que um arquiduque austríaco….
E, assim, lidos, viajados, falando vários idiomas, maridos das melhores mulheres – os nossos idiotas têm também os melhores cargos e exercem as funções mais transcendentes. Eu disse que estão por toda a parte: – na política como nas letras, nas finanças como no cinema, no teatro como na pintura. Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: – ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina.
Os trechos acima fazem parte de uma crônica de Nelson Rodrigues publicada no dia 15 de abril de 1968. É por essas e outras que o chamam de gênio. Suas obras são atemporais e perturbadoras. Tanto as peças quanto as crônicas de jornal, quanto os contos, quanto os romances. Os trechos foram retirados do livro “O óbvio ululante“, uma seleção das memórias (ou crônicas) de Nelson publicadas no jornal O Globo entre os anos de 1967 e 1968, que comecei a ler muito por acaso anteontem e não estou conseguindo parar.
Não sei bem como explicar o estilo de Nelson. Ele consegue ser, ao mesmo tempo, irônico, sagaz, divertido e dramático. No mesmo momento em que há esperança, não há por quê lutar. É como se um boxeador jogasse a toalha, mas não a deixasse tocar o chão, e voltasse ao ringue logo em seguida. Simplesmente incrível e inacreditável. Mas possível, em Nelson Rodrigues.
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