A música é uma das matérias-primas da literatura. Não são poucos os escritores que fizeram contos, poemas ou mesmo romances inspirados em canções. Há também aqueles que só conseguem criar se estiverem com o som ligado (é o meu caso). O estilo varia – alguns ouvem música clássica, outros se sentem mais à vontade com o rock –, mas a necessidade é a mesma: precisam estar ouvindo alguma coisa, ou então não conseguem escrever.
Mas às vezes a coisa acontece de repente, sem que o autor esteja preparado. Ele não tem papel e caneta em mãos, nem está diante do computador. Foi o que aconteceu com o escritor Henrique Rodrigues. Ele estava fora de casa quando, ouvindo uma canção da Legião Urbana, teve a ideia de escrever um conto. E, ao comentar o fato com um amigo escritor, percebeu que misturar literatura com as músicas da Legião poderia render não apenas um conto, mas sim um livro inteiro: “quando bateu a vontade de escrever um conto a partir de ‘Acrilic on canvas’, comentei com o Maurício de Almeida [um dos autores que compõem a coletânea], que achou legal e disse que escreveria um sobre ‘Sagrado coração’. Daí a ideia foi se espalhando com entusiasmo entre outros escritores”.
Assim nasceu “Como se não houvesse amanhã” (ed. Record, 160 págs., R$ 32,90), coletânea de contos que contou com a participação de 20 escritores e que foi lançada no fim de março, em meio às comemorações do aniversário de 50 anos de Renato Russo, líder e vocalista da Legião que morreu precocemente em 1996, em decorrência da AIDS.
Os contos do livro mostram que banda ainda influencia muita gente, mesmo tendo ela encerrado suas atividades há cerca de 14 anos. Sobre isso, Henrique diz que “A obra da Legião Urbana conseguiu não só ser um sucesso pop na época, mas também atingir um nervo lírico de várias gerações. Talvez por isso eles consigam dizer coisas até para pessoas bem novas, que nasceram depois que banda acabou. Isso é algo que acontece com os Beatles também. Você de repente vê adolescentes cantando e curtindo sem que nenhum adulto tenha imposto nada. Assim, a Legião consegue estabelecer uma relação íntima com pessoas de diferentes idades e, em vez de ser datado e local, tornou-se atemporal e universal”.
Como acontece com toda coletânea, há pontos fortes e pontos fracos. Algumas histórias são muito boas, é o caso de “Será” (um belíssimo conto de Daniela Santi), “Acrilic on canvas” (Henrique Rodrigues), “Eduardo e Mônica” (Rosana Caiado Ferreira), “Giz” (Manoela Sawitzki) e “Meninos e meninas” (Miguel Sanches Neto). Outras não funcionam tão bem, como “Que país é este” (Alexandre Plosk) e “Pais e filhos” (João Anzanello Carrascoza), talvez as músicas tenham limitado um pouco os autores.
Assim como as músicas da Legião, os contos abordam temas importantes: amor, morte, sexualidade, indignação, perda. Ou seja: o livro não é apenas uma homenagem à banda. “Como se não houvesse amanhã” é, antes de qualquer coisa, um livro de contos, e é a literatura que prevalece. Neste caso, a boa literatura, apesar de uma ou outra história não corresponder à força da música utilizada como inspiração.
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