Vidas Novas (2)

Estou sentado junto ao “monstro verde”* e sinto uma corrente de ar em minhas costas. Penso que Jörg ou Georg deve ter chegado. Viro-me – e tenho de espirrar. “Saúde”, diz uma voz de mulher. A porta está trancada. Espirro mais duas vezes, e a cada vez a voz de mulher me deseja “Saúde!” com a mesma serenidade… “Quem é a senhora?”, pergunto e me aproximo. Ela está encolhida perto da lareira e massageia os dedos dos pés. Um sorriso perpassa seu rosto e relaxa de leve suas feições. Em seguida, ela inspira pela boca sibilando e volta a espirar pelo nariz fazendo barulho. Nos calcanhares, as meias dela têm buracos. “Olhe para outro lado”, ela diz. “Eu pensei”, ela prossegue, e por um momento pressiona os lábios, juntando-os, “pensei que você havia pedido para eu entrar. Bati na porta.” Com as costas tocando os ladrilhos da lareira, ela se levanta devagar. Tenta calçar os sapatos. “Ai! Ai!”, ela geme. “Isso dói tanto!”

“Pelo amor de Deus!”, exclamo. O que eu havia considerado ser uma mecha de cabelo que ficara presa à comissura da boca, agora que ela olha para o teto revela-se uma cicatriz. Compreendo que ela
é uma nobre.

“Ele não esquenta mais”, digo, me desculpando, e aponto para meu sobretudo ao lado da porta. Me incomodo, porque há dias planejo levá-lo para a tinturaria a fim de lhe devolver as antigas características. “A senhora quer me acompanhar?”, pergunto. “Se formos logo, conseguiremos chegar à tinturaria antes das seis.”

“Mas como eu poderia fazer isso?!”, ela exclama. Lágrimas sufocam sua voz. Será que eu não tinha olhos para enxergar, se até um cego perceberia que ela se encontrava numa situação que a impedia
de dar até mesmo um único passo!

“Posso carregar a senhora?”, pergunto, sem conseguir evitar a esperança em minha voz. A blusa dela se abrira na parte de baixo e vejo um triângulo de sua barriga, em cujo meio está o umbigo, exatamente como o olho de Deus, penso comigo. Me alegro com a comparação. É justo de situações embaraçosas, digo, que surgem as melhores oportunidades. Eis que então ela dá uma gargalhada.
Nada esquivos, seus olhos passeiam por mim. É nítido como tudo em mim lhe dá vontade de rir, pareço invocar as gargalhadas dela. Por fim, ela é sacudida por um ataque de riso que não consegue dominar
nem quando segura as duas mãos diante da boca. Ela luta para conseguir respirar, se curva de tanto rir, as pontas de seus claros cabelos ruivos caem sobre seu rosto e o escondem completamente.

Eu já estava sentado à borda da cama e escutava, tanta certeza eu tinha de ter ouvido o riso. Eram quatro horas! Meu dia havia começado.

* Mais um trecho de “Vidas Novas”, romance do escritor alemão Ingo Schulze, que está no Brasil por esses dias – hoje o livro foi lançado no Rio de Janeiro, no Instituto Goethe, com direito a bate-papo com o autor e o tradutor do livro, Marcelo Backes, mediado pelo escritor Sérgio Rodrigues. “Monstro verde” é o apelido de uma máquina de escrever elétrica que o protagonista e seus companheiros de jornal “ganharam” páginas antes. Eu não iria fazer comentário algum no post, mas houve a necessidade de esclarecer o que é o tal “monstro verde”, então aproveito para dizer mais o seguinte: a citação aqui deste trecho se dá porque, ao lê-lo, me vi diante de um conto dentro do romance. E esta passagem é de uma beleza que não há como descrever com palavras.

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