Valor e verdade, de André Comte-Sponville

Resenha publicada na revista Conhecimento Prático Filosofia, edição de fevereiro deste ano.

Valor e verdade: estudos cínicos”, de André Comte-Sponville, reúne “doze estudos (…) que têm em comum versar sobre um mesmo objeto, que é a relação entre valor e verdade”. Mas o filósofo francês não se restringe aos temas propostos e aborda outros assuntos como capitalismo, política, moral e ética, tudo isso aliado a uma espécie de viagem pela história da filosofia, através de citações de filósofos, suas obras e correntes de pensamento.

Publicado na França em 1995 e recentemente publicado no Brasil, “Valor e verdade” chega ao Brasil em um momento mais que oportuno: necessário. Vivemos tempos instáveis nos campos da economia, da política e da ética. E André Comte não se isenta de abordar esses temas espinhosos, polêmicos. Não que a filosofia em si não seja polêmica, mas os temas citados atingem e interessam a um número bem maior de pessoas. Até porque não é tão difícil conversar sobre política, economia e ética. Qualquer blogueiro faz isso. Mas uma conversa sobre conceitos filosóficos certamente não é para qualquer um, nem pode ser baseada apenas em noticiários televisivos.

No texto “Uma política do pior?”, Comte deixa claro no início que “não sugiro que ‘se busque o pior’, como dizem os dicionários, ‘para dele tirar partido’! (…) Se falo de política do pior é num sentido bem diferente. Trata-se, no meu espírito, de uma política que, em vez de querer realizar o melhor, se atribuiria como tarefa enfrentar o pior…”. Em vinte páginas Comte nos apresenta conceitos e ponderações a respeito do comunismo, liberalismo e socialismo, além de abordar temas como o aborto (legalizado na França desde 1975). Para Comte, deve-se buscar uma política “não do melhor possível, mas do pior real”. Ou seja: não trabalhar tendo em mente utopias, mas sim identificando e solucionando problemas reais.

“Não duvido que a moral e a economia possam às vezes se dar bem: por que não se poderia enriquecer honestamente?”. Esse trecho, do texto “O capitalismo é moral?”, parece ingênuo, mas não é. Até porque logo depois Comte diz “Não confundamos, no entanto, moralidade com legalidade. Está claro que se pode enriquecer respeitando a lei. Mas vocês conhecem muitos santos bilionários?”.

Em “A ilusão, a verdade e o carpete de Woody Allen”, André Comte parte do conceito de ilusão para tentar elucidar a questão do valor e da verdade; isso porque “todos os nossos valores são ilusões”. Como dizem, a verdade nada mais é que um valor. Mas se os valores são ilusões, as verdades também são? Não, claro. A verdade é que a questão da verdade é muito mais complexa do que se imagina; a impressão é a de que os filósofos jamais chegarão a um consenso a respeito disso: “No fundo, nunca se sabe o que um filósofo dogmático ama: a verdade ou a certeza? Para um filósofo cético, ao contrário, não há hesitação: é a verdade que ele ama, e que ele ama – na ausência de toda certeza – à custa da angústia e da dúvida. De fato, quem ama a verdade mais do que a certeza tem de amar também a seguinte verdade: a de que não tem como provar que a conhece e, portanto, tem de amá-la na sua incerteza…”.

A razão do subtítulo do livro, “estudos cínicos”, é explicada pelo texto “A vontade cínica”, no qual André Comte faz uma verdadeira apologia ao cinismo: “(…) o cinismo que tem a minha simpatia não é o cinismo, vulgar ou distinto, do político sem escrúpulos nem do negocista desavergonhado. (…) O cinismo, no sentido em que o considero, (…) é uma virtude intransigente e altiva, livre de todas as convenções, de todos os dogmas, e ocupada somente em querer: o cinismo é uma virtude sem fé nem lei.”.

Numa época em que valores como honestidade, honra e coerência são solenemente ignorados, a descoberta de que o cinismo já foi uma virtude não chega a ser surpreendente. Mas se os valores tidos como nobres são quase termos pejorativos hoje, não é uma má idéia buscar as raízes de valores imorais e fazer-lhes justiça, revelando que, na sua origem, o imoral era moral. E se é quase uma vergonha ser honesto – vide a quantidade de sujeitos suspeitos levantando a bandeira da ética e da moral –, sejamos cínicos, então, do jeito André Comte-Sponville de ser.

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