Vagarosamente, ao vento

*Publicado em 2006 no Blog Paralelos.

A escritora americana Patricia Highsmith é mais conhecida por obras que se encaixam no gênero policial. O seu livro mais conhecido é, talvez, “O talentoso Ripley”, romance que foi adaptado com sucesso para o cinema em 1999 (estrelado por Matt Damon). Alguns anos depois, em 2003, saiu nos cinemas “O retorno do talentoso Ripley”, refilmagem de “O amigo americano”, de 1977, adaptação de Win Wenders para o romance homônimo de Patricia Highsmith, protagonizada por John Malkovich.

Vê-se que Hollywood soube bem aproveitar a talentosa Patricia. Mas o talento dela não deve ser restringido à literatura policial. Patricia Highsmith sabe, como poucos, criar uma atmosfera em seus textos, além de desvendar ou apontar (às vezes ela faz as duas coisas ao mesmo tempo) certos conflitos e aspectos dos seres humanos que apenas o verdadeiro, talentoso e sensível escritor pode apresentar.

É o que ela faz nos contos reunidos em “Vagarosamente, ao vento“* (José Olympio, 221 págs.). O primeiro conto do livro, “O homem que escrevia livros na cabeça”, fala por si só, e valeria pelo volume inteiro; isso se os outros 11 não fossem tão bons quanto ele. Eis o primeiro parágrafo do conto citado:

“E. Taylor Cheever escrevia livros na cabeça, nunca no papel. Quando morreu, com sessenta e dois anos, tinha escrito catorze romances e criado cento e vinte personagens, dos quais, pelo menos ele, lembrava-se nitidamente.”

(Se você pensa que começar um conto pelo final tira dele toda a graça, está muito enganado…)

Em “O pequeno lago”, uma jornalista resolve se mudar para o interior com o seu filho. Ela procura tranquilidade, está se recuperando do choque de ter perdido o marido em um trágico acidente de avião. Aquele lugar especial, aquela casa tranquila, aquele lago… são prelúdios de uma tragédia, que se concretiza de maneira inesperada e chocante.

“Aqueles terríveis despertares” conta a história de um casal que não deu certo, mas não se separam, e descontam suas decepções e frustrações nos filhos. Com mais intensidade na filha caçula, Francy. O conto pode ser chocante para os mais sensíveis. Não é agradável ler sobre uma mulher que espanca sua filha de dois anos. Menos agradável ainda é ler a descrição das pancadas. Mas é a realidade – ou não é? No início do conto, são apresentadas 4 crianças. Uma delas “termina” antes do conto, por negligência da mãe.

Vale, e muito, ler “A gravata de Woodrow Wilson”. Dá pra sentir o clima do conto nesse trechinho: “Mataria pelo menos cem pessoas. Eles teriam de subir até o alto do prédio para pegá-lo. Aí eles veriam. Aí teriam de tratá-lo como alguém que existe.”

E ainda há “O passageiro para as ilhas”, do qual resolvi reproduzir um trecho maior abaixo, e não conto nada da história pra não estragar a surpresa.

Para cair num clichê, eu digo que os contos de “Vagarosamente, ao vento” são pequenas – mas profundas – análises da condição humana. Mas, de clichê, os 12 contos dessa coletânea não têm nada. São 12 histórias de primeiríssima qualidade.

É um livro que, infelizmente, pode ser difícil de encontrar*. Mas vale a pena suar pra isso.

Trecho de “O passageiro para as ilhas”

– Pode desembarcar quando quiser.

Dan lançou um olhar perplexo em torno. Era verdade, as pessoas estavam saindo pela portinhola da amurada, passando com suas malas para o outro lado do costado.

– Em cima do quê? – perguntou Dan, horrorizado.

O suboficial tornou a rir e, sem se dar ao trabalho de responder à pergunta, afastou-se vagarosamente com seu cordão enovelado.

Dan segurou-o pelo braço.

– Desembarcar aqui? Por quê?

– Tanto faz aqui como em qualquer outro ligar. Onde tiver vontade. – O suboficial deu uma risadinha.

– É tudo igual.

– Tudo mar?

– Não existe mar nenhum – disse o suboficial. – Mas claro que também não existe terra.

*A edição do link é de 1993. A que tenho, de 1996, cuja capa ilustra este post, está esgotada. Por isso disse que pode ser difícil encontrá-la.

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