Sobre o projeto da Bethânia

Crédito da foto: Alvaro Riveros

Causou polêmica a notícia (divulgada ontem) de que o Ministério da Cultura autorizou a cantora Maria Bethânia a captar 1 milhão e 300 mil reais para a execução do projeto “O mundo precisa de poesia”, que consistirá na produção de 365 vídeos em que a cantora interpretará, pelo que entendi, poemas. Esses vídeos serão disponibilizados na internet, um por dia.

Horas depois da publicação da notícia, o nome de Maria Bethânia já estava nos Trending Topics do Twitter, sendo que a maior parte dos comentários eram criticando a decisão do Ministério e também a posição de Bethânia como proponente.

Como nessas horas muitos dizem o que querem e poucos são os que vão realmente apurar como funcionam certas coisas, resolvi relembrar – porque tempos atrás eu havia pesquisado sobre isso – a Lei Rouanet. Explicações mais detalhadas o leitor encontra no site do Ministério da Cultura. Aqui serei bem simples/objetivo, ou curto e grosso, fica a critério do leitor.

Primeiro: Maria Bethânia não recebeu dinheiro algum do Ministério da Cultura. O que ela recebeu foi uma “permissão” para captar o 1 milhão e 300 mil reais junto a empresas privadas. Mas se ela vai captar recursos junto a empresas privadas, por que o Ministério da Cultura tem que autorizar isso? Aí é que entra um outro ponto que muita gente esquece, ou se faz de desentendida e ignora.

As empresas que resolverem colaborar com o projeto de Maria Bethânia terão deduções no imposto de renda. Não vou colar aqui um trecho do texto que está no site do Ministério porque a Ministra cancelou a licença Creative Commons, e, como eu sinceramente não sei, nem estou muito interessado em saber neste momento, o que isso significa, acho melhor não reproduzir nada de lá, sob risco de ser até processado ou sei lá o quê. Mas é só clicar neste link e ler o segundo parágrafo do texto.

Imposto de Renda, quase todo mundo sabe, é algo que quase todo mundo e quase toda empresa paga ao governo. Ou seja, trocando em miúdos: essa grana, esse dinheiro, essa bufunfa vai para os crofres públicos. Agora atentem para o que vem a seguir, porque é DE EXTREMA IMPORTÂNCIA: se há dedução no imposto de renda, há uma diminuição no valor que ela paga ao governo. Se há diminuição no valor que ela paga ao governo, é menos dinheiro que vai para os cofres públicos.

Menos dinheiro nos cofres públicos é menos dinheiro para políticos corruptos desviarem para suas contas em paraísos fiscais, lógico, mas é também menos recursos para se investir em educação, saúde, segurança e infraestrutura. Coisas muito mais importantes do que quem quer que seja recitar seja lá o poema que for em qualquer lugar do universo.

O valor deduzido dos impostos das empresas que vão colaborar com o projeto de Maria Bethânia pode não fazer muita diferença, no fim das contas. Mas o Ministério da Cultura não tem apenas esse projeto para autorizar. Já autorizou muitos outros [em 2007 Vanessa da Mata se valeu da Lei para captar quase 1 milhão de reais para produzir um DVD que foi vendido em lojas, para ficar em apenas um exemplo] e há muitos esperando para serem autorizados. Nem eu nem você temos noção do montante, mas quem tiver bom senso tem noção do quão ridículo é um artista do porte de Bethânia – me desculpe dizer isso, Maria, eu te admiro demais – se prestar a um papel desses.

Gostaria de deixar claro que meu reclame não tem a ver com a Maria Bethânia. Outros artistas já fizeram pedidos semelhantes, mas calhou de essa bomba estourar na mão dela, infelizmente. O que realmente incomoda é a questão de artistas com toda uma carreira e respaldo procurarem a Lei Rouanet. Incentivos culturais do governo, no meu entendimento, deveriam ser para artistas que estão começando, que estão ainda no início de uma trajetória que pode ser sufocada pela falta de alguns milhares de reais para comprar bons instrumentos e equipamentos musicais, por exemplo. Artistas já estabelecidos podem e devem usar a lei, claro, mas acho que o correto seria limitar o valor a ser capitado e ser mais criterioso em relação aos projetos. Captar recursos pra gravar um DVD e depois vendê-lo a sei lá quantos dinheiros? Para recitar poemas que serão assistidos por pessoas que têm um padrão de vida relativamente confortável? Acho que não é esse o caminho.

Quantas bandas, quantos pintores, quantos atores, atrizes, roteiristas de teatro, quantos escritores não deixam de divulgar seus trabalhos por pura falta de dinheiro? O 1 milhão e 300 mil que a Maria Bethânia foi autorizada a captar não poderia ser destinado a projetos mais amplos? Por que não “captar” esse dinheiro para a construção de bibliotecas e incentivar a leitura em comunidades carentes, ou para a criação de oficinas de música, desenho artístico etc.? Há empresas que já fazem isso, mas por que não incentivar a ampliação disso tudo?

São essas questões – na verdade, a falta de respostas verdadeiras e convincentes para elas – que incomodam.

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