Os descaminhos da crítica literária brasileira

* O texto abaixo, de minha autoria, foi publicado na edição de julho de 2009 do Suplemento Literário de Minas Gerais.

Passei dias e dias pensando em como escrever este texto. Meu objetivo era mostrar que a crítica literária brasileira está em crise. Depois, pensando melhor, cheguei à conclusão de que a situação não é tão desesperadora. Não há uma crise, mas sim uma proliferação de pessoas incompetentes e/ou interesseiras praticando a crítica literária, pessoas que não têm nenhum comprometimento com a literatura.

Quando digo “crítica literária” não me refiro apenas às análises de livros que encontramos em jornais e revistas. Coloco no mesmo balaio – e sei que vai haver quem proteste – blogs e sites que se dedicam a comentar literatura. Mas, se generalizo, não é senão porque, de uns tempos para cá, todo indivíduo que leu meia dúzia de clássicos tomou a liberdade de se dizer crítico literário.

Voltemos à “crise”. “Normalmente as resenhas são feitas no interesse dos editores e não no interesse do público”, diz Arthur Schopenhauer em “A arte de escrever“. Foi assim por um bom tempo, e, ainda que isso tenha diminuído bastante, continua sendo. Com uma pequena diferença: hoje o interesse é, quase sempre, pessoal: do próprio “crítico”. Não há mais, salvo raras exceções, críticos preocupados em expor sua verdadeira opinião sobre determinada obra. Hoje boa parte dos resenhistas utiliza critérios abomináveis quando vão escrever a respeito de algum livro: amizade (ou inimizade) que têm com o autor criticado e/ou ter um original na fila de espera da editora que publicou o livro a ser resenhado são dois exemplos.

Dessa forma, lemos críticas favoráveis a livros ruins e desfavoráveis a livros bons. É certo que uma resenha não tem mais o “poder” que tinha antes. Do final do século XIX até meados do século XX (talvez um pouco mais, até a década de 70), um crítico, a depender de quem ele fosse, poderia definir o destino de um livro. Mas não é porque hoje uma resenha não tem tal influência que podem os críticos utilizar seus textos para adubar anseios pessoais e profissionais.

No ensaio “O ideal do crítico“, Machado de Assis faz uma belíssima reflexão sobre a crítica literária. Mais que refletir, Machado mostra os caminhos que levam a uma crítica justa, coerente, sincera e independente: “A crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da simpatia, procure reproduzir unicamente os juízos da sua consciência”. Críticos assim não têm muito espaço na imprensa, é verdade, e muitas vezes acabam desistindo da atividade, tamanhas são as dificuldades enfrentadas e as restrições que lhes são impostas. Recorro, mais uma vez, ao ensaio de Machado, para mostrar quão difícil pode ser a vida de um crítico correto: “Com tais princípios, eu compreendo que é difícil viver; mas a crítica não é uma profissão de rosas, e se o é, é-o somente no que respeita à satisfação íntima de dizer a verdade”.

Eis o que deveria guiar todo crítico: a satisfação íntima de dizer a verdade, seja ela qual for. Alguns certamente dirão que a verdade não existe, e invocarão a máxima utilizada pelos relativistas, que dizem que tudo é relativo. Deixo-lhes, então, um trecho do livro “O rio que saía do Éden”, de Richard Dawkins: “Aponte-me um relativista cultural a 10 quilômetros de distância e lhe mostrarei um hipócrita. […] Se você estiver voando para um congresso internacional de antropólogos ou de críticos literários, a razão pela qual você provavelmente chegará lá – a razão pela qual você não se esborrachará em um campo cultivado – é que uma multidão de engenheiros ocidentais cientificamente treinados realizou os cálculos corretamente”.

O argumento “tudo é relativo”, se é que se pode dizer que isso é um argumento, é divertido quando utilizado em algumas ocasiões (é uma excelente maneira de se irritar uma pessoa, aliás). Mas existem discussões nas quais essa frase não deve ser utilizada jamais. E alguns desses casos estão justamente dentro da literatura.

Existem obras que simplesmente são ruins. Podem ressuscitar George Orwell, um dos maiores críticos literários da história, colocar uma arma em sua cabeça e obrigá-lo a escrever uma resenha favorável sobre uma obra desprezível. Podem fazer um clone de Schopenhauer e torturá-lo para que escreva uma resenha elogiando uma obra de péssimo gosto. Muitos leitores seriam ludibriados, certamente. Afinal, Orwell e Schopenhauer estão acima de qualquer suspeita (mesmo tendo, ambos, errado em alguns julgamentos, como ocorre com todo crítico). Mas, ainda que sejam eles a elogiarem uma obra menor, tal livro não terá sua essência pobre e de baixa qualidade alterada. O pior que pode acontecer, se feita tal inversão de julgamentos, é justamente o leitor levar gato por lebre: comprar um livro ruim pensando que é bom, ou deixar de comprar um livro bom porque alguém o classificou como ruim. Pior ainda: o leitor pode começar a duvidar de sua própria capacidade de discernimento – ainda que a grande maioria dos leitores não tenha tal qualidade –, ou seja, ele pode deixar de folhear livros nas livrarias – em busca de alguma obra que lhe agrade – e, em vez disso, guiar-se apenas pelas listas de “mais vendidos”, que, salvo raras exceções, são compostas por obras irrelevantes. Prova disso é a quantidade de pessoas engabeladas pelos pseudocríticos e por essas listas de “mais vendidos” que existem por aí.

Mas por que obras ruins são publicadas, então? Ao contrário do que desejava Schopenhauer (“a grande maioria dos livros é ruim e não deveria ter sido escrita”), não é possível simplesmente ignorar as tais obras menores. Muitas delas são necessárias para sustentar o mercado editorial. No fim das contas, são os livros ruins que mais vendem. Essa talvez seja a única virtude deles, e é mesmo uma posição honrosa, desde que seus autores não tenham arroubos de arrogância e prepotência, achando-se os mais novos cânones literários.

Infelizmente, a camaradagem, o apadrinhamento, a inimizade são fatores que sempre estiveram presentes na literatura e sempre vão estar. Na verdade, tais características são visíveis em qualquer área da sociedade. É assim na política, é assim no trabalho. Tendemos a ser condescendentes com aqueles que estimamos e intolerantes com aqueles pelos quais não temos estima alguma. O que fazer, então, a respeito disso? Admitir e contentar-se com a situação? De forma alguma. Citando Cícero, Machado diz, ainda no seu “O ideal do crítico”: “É levantando as estátuas do teu inimigo que tu consolidas as tuas próprias estátuas”. Esse deve ser o pensamento de todo crítico: elogiar até os inimigos, se eles de fato merecerem. E criticar até mesmo os melhores amigos, se realmente não houver qualidade em suas obras.

No fim das contas, trata-se de uma questão de caráter. Somerset Maugham, nas suas “Confissões“, diz: “o grande crítico deve ser um grande homem”. Da mesma forma que, nas palavras de J.M. Coetzee, “o padrão ao qual todo romancista sério deve aspirar, mesmo sem a menor chance de chegar lá” é “o padrão do mestre Tolstói de um lado e do mestre Doistoiévski do outro”, o crítico sério deve almejar chegar a um patamar em que sua credibilidade seja ululante, sua honestidade um cartão de visitas e que sua sinceridade esteja estampada em cada texto que escrever.

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