Ninguém sente muito*

No fim da noite passada, assistindo por acaso o Jornal da Globo, soube que um policial matou, por engano (pausa).

No fim da noite passada, assistindo por acaso o Jornal da Globo, soube que um policial matou, por engano, uma mulher inocente (nova pausa).

No fim da noite passada, assistindo por acaso o Jornal da Globo, soube que UM POLICIAL MATOU, POR ENGANO, UMA MULHER INOCENTE.

Vocês devem ter visto. Isso foi no Rio de Janeiro, se não me engano. Ela estava na sacada de sua “casa” – porque, a rigor, não é uma casa; quem mora na favela não chama o lar de “casa”, chama de “barraco” ou coisa semelhante – quando o indivíduo deu um tiro para o alto; tiro esse que não tinha razão nenhuma de ser. Garotos brincavam, e os policiais acharam que estava acontendo um arrastão. Por isso a intervenção policial, por isso o tiro, para acabar com a bagunça.

O caso é que esse tipo de coisa não surpreende mais a ninguém. Como a morte do menino João, que morreu depois de ser arrastado por 7 kilômetros, preso que estava a um carro roubado por jovens garotos de 16 anos – foi isso, certo? Se não foi, alguém me corrija.

Se bem que não importa a idade dos garotos que arrastaram João. Ou se foi apenas um garoto. O que importa é a idade de João, 6 anos de idade. E morreu assim, de graça. Vítima da crueldade de uns outros guris.

O que importa é a idade da mulher morta por engano, que tinha 24 anos e toda uma vida pela frente, assim como o menino João.

E o que fode tudo, mesmo, é que estamos nos acostumando a esse tipo de coisa. Até a nossa indignação, em outros tempos sincera, verdadeira e cheia de sentimento, hoje soa artificial, de tão banal que se tornou ficar indignado.

Ficar indignado? Pra quê? Adianta?

A gente quase não sente. Ninguém mais sente.

Só as famílias dos mortos. Estes sim, sentem. E muito.

Eu sinto apenas que o policial, mesmo tendo sido preso, tenha saído da prisão depois de pagar fiança. Sinto apenas que os guris que mataram João não sejam presos por toda a vida, pois são menores de idade. E sinto o fato de a hipocrisia de muita gente impedir que seja feita uma verdadeira e dura reforma nas leis que regem esse nosso país de m…

* “Ninguém sente muito”, epígrafe do livro “O homem que não gostava de beijos”, de Edward Pimenta. A frase é atribuída a Jary Mércio.

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