Lendo Nelson Rodrigues

“Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo: perguntou-me: ‘O que é que você leu?’ Respondi: ‘Dostoievski.’ Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: ‘Que mais?’ E eu: ‘Dostoievski.’ Teimou: ‘Só?’ Repeti: ‘Dostoievski.’ O sujeito, aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski.”

O trecho acima é de uma das crônicas do livro “O óbvio ululante”, de Nelson Rodrigues, e foi escolhido para iniciar este post por um motivo muito simples: há autores que têm obras tão importantes, com tanta qualidade e abrangência, que poderiam ser lidos e relidos infinitas vezes sem nunca se esgotarem.

Dostoiévski (faço questão do acento suprimido no livro) é um desses, e há uma série de outros. Na verdade, cada um tem os seus, e um dos meus é Nelson Rodrigues.

Não li, ainda, muitos livros de sua autoria. De cabo a rabo, apenas uma peça de teatro (“Vestido de noiva”) e um livro de crônicas (“O baú de Nelson Rodrigues”). Mas desde que a editora Agir começou a reeditar sua obra venho-os adquirindo à medida que o bolso deixa, e lendo um tanto quanto anarquicamente, alguns textos de um, depois textos de outro, alternando as obras. Não é lá a melhor maneira de se ler. Tenho feito isso porque, quando comecei a ler “O óbvio ululante”, notei que estava começando a querer escrever como Nelson. E não se pode querer escrever como Nelson. Além de ser uma afronta ao gênio, é humilhante, pois jamais alguém conseguirá escrever como ele.

O mais recente a ganhar lugar na estante foi “Memórias – A menina sem estrela” (Agir, 456 páginas, R$ 69,90), com o qual me autopresenteei semanas atrás, por ocasião de meu aniversário. Lançado em 2009, ele reúne crônicas escritas por Nelson entre fevereiro e maio de 1967. Como diz o título do livro, trata-se de crônicas nas quais o autor resgata e compartilha suas lembranças, sua visão de mundo. A primeira crônica, na qual Nelson primeiro diz ouvir um vendedor ambulante gritando “A Nova Prostituição do Brasil!” para depois dizer que ouviu mal e o grito é “A Nova Constituição do Brasil” é, ao mesmo tempo, hilária e mordaz.

Alguns textos à frente, Nelson escreve sobre a tragédia que matou Paulo Rodrigues, seu irmão, e toda a sua família. Um texto doloroso de um homem que viveu muitas tragédias: seu filho, carinhosamente chamado de Nelsinho, seria preso e torturado durante a Ditadura, anos depois; seu irmão, Roberto Rodrigues, fora assassinado em 1929, na redação do jornal em que trabalhava; seu pai, Mário Rodrigues, faleceria pouco tempo depois que Roberto morrera; e por aí vai.

***

Volta e meia Nelson atacava a esquerda. Em outra crônica de “O óbvio ululante”, “A fome do Nordeste”, ele admite que essa é uma de suas obsessões: “Alguém poderá objetar que estou insistindo muito nas esquerdas. Mas explico. Primeiro, qualquer autor tem suas fixações fatais…”. Ele prossegue, mais adiante: “Portanto, admitam que também cultivo eu minhas obsessões”; e em seguida fulmina: “a esquerda é a fatalidade da nossa época”.

No mesmo texto, ele diz que “ninguém consegue ser nada, em nossa época, sem o empurrão promocional das esquerdas. Waldomiro Autran Dourado acaba de publicar sua ‘Ópera dos mortos’. É uma obra-prima. Mas ninguém escreve sobre a ‘Ópera dos mortos’. (…) E como é a ‘festiva’ que promove o artista, ou o enterra, faz-se para o livro de Autran um feio e vil silêncio.”

Seria talvez este o motivo de uma obra monumental como a de Nelson não ser tão incensada nos nossos dias? Afinal, a maioria dos intelectuais brasileiros tem tendências esquerdistas. Pode ser que haja alguma espécie de ressentimento, mas aqui já estaríamos entrando no terreno das especulações.

O que importa, mesmo, é que Nelson Rodrigues é, repito, um gênio. E se me perguntassem o que estou lendo agora, eu diria: Nelson Rodrigues. E se perguntassem o que mais eu leio, diria: Nelson Rodrigues. E o que ainda vou ler? Nelson Rodrigues.

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