Eu, Deus

“Quando lemos romances, não somos o que somos habitualmente, mas também os seres criados para os quais o romancista nos transporta. Esse traslado é uma metamorfose: o reduto asfixiante que é nossa vida real abre-se e saímos para ser outros, para viver vicariamente experiências que a ficção transforma como nossas.”

As palavras acima foram escritas pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa. Ao ler esse trecho, imediatamente pensei “eis o início perfeito para a resenha de ‘Eu, Deus’ [Record, 2006, 288 páginas]”, romance do jornalista e escritor Sidney Garambone.

Isso porque, mesmo depois de dias e dias de finalizada a leitura do livro, não conseguia iniciar um texto que pudesse transmitir o quanto eu gostei dele e o quão bom ele é. Agora, com as palavras firmes de Vargas Llosa, sigo tranquilo no escrever desta resenha.

Mas a citação não serve apenas de começo para este texto; ela não é gratuita. Peço ao caro leitor, que a releia:

“Quando lemos romances, não somos o que somos habitualmente, mas também os seres criados para os quais o romancista nos transporta. Esse traslado é uma metamorfose: o reduto asfixiante que é nossa vida real abre-se e saímos para ser outros, para viver vicariamente experiências que a ficção transforma como nossas.”

Lembrei de “Eu, Deus” quando li esse parágrafo porque, não faz muito tempo, pensei em reunir alguns amigos que têm um gosto cinematográfico parecido com o meu, para assistirmos, com alguma frequência, a alguns clássicos do cinema. A cada encontro assistiríamos a um dvd, levado por um dos integrantes do grupo. Depois, conversaríamos sobre o filme e sobre cinema, enquanto recolhíamos as pipocas caídas no chão e terminávamos a segunda garrafa de vinho da tarde (ou da noite…).

Não cheguei a apresentar essa ideia a meus amigos. Eu não poderia fazer da minha casa o espaço para esses encontros e nem iria pedir isso a um deles. Mais uma ideia minha que ficará para mais tarde. E eu já havia esquecido dela. Tanto que li “Eu, Deus” e sequer lembrei da dita cuja. Só depois de ler as reflexões de Llosa foi que lembrei disso.

Em “Eu, Deus” um grupo de amigos começa a se reunir toda terça-feira à noite, para assistir filmes. Clássicos do cinema relançados em dvd. Bendita tecnologia.

Os encontros não passariam de simples encontros se não fosse Victor Vaz, escritor e um dos integrantes do grupo, que inicialmente tem quatro pessoas: Victor, Pink (uma atriz de teatro), Paulina (a enigmática e geniosa Paulina) e o vaidoso Gustavo, o anfitrião e idealizador das reuniões.

Victor logo solta sua imaginação e batiza os encontros de “TPM” (Tuesday Party Movie). “O nome, em inglês, me veio depois, sozinho, no carro, voltando para casa naquela mesma noite. É cacoete profissional de nomear, batizar, rotular.”

Na madrugada que se segue ao primeiro encontro, Victor escreve as primeiras páginas do que pretende transformar em seu mais novo livro, ficcionando – ou não – as sessões de cinema das terças. Victor é um escritor “famoso, ainda não, mas já reconhecido pela crítica, por amigos, pelos leitores desconhecidos…” e tem quatro livros publicados. No momento, ele amarga o fracasso do seu último livro e quer, de qualquer jeito, fazer de sua próxima criação algo realmente bom. “Era eu nos três primeiros livros. Não era eu no quarto. Era eu novamente agora. Mas não só eu. Éramos eu, Paulina, Gustavo e Pink. A idéia de transformar a TPM num livro foi repentina e oportunista (…) Mal bati a porta de casa, liguei o computador, o ar-condicionado, e refleti. Até quando vão estes encontros promovidos pelo Gustavo? Não importa. Vou escrever sobre este primeiro. Repetir falas, inventar falas, anexar personagens, destruir e construir almas.”

E é aí que começam os problemas.

Porque Victor resolve enviar o conteúdo do que escreve para os participantes da TPM. No início, todos acham graça, chamam os capítulos do provável livro de “relatórios” – o que, aliás, deixa o escritor muito irritado. Mas quando ele interfere na realidade, modificando-a ou simplesmente revelando-a sem nenhum pudor, os amigos entram em conflito.

Ninguém escapa à pena de Victor. Nem mesmo novos participantes da TPM, convidados para preencher o vazio temporário deixado por alguns, ou apenas para confundir a mente de Victor, na tentativa de que, com mais e desconhecidos personagens, ele pudesse se perder no momento de escrever sobre a reunião da vez.

Mas para Victor, o verdadeiro escritor é vaidoso, orgulhoso e não se dá por vencido. Ele continua escrevendo o livro e, quando as discussões ameaçam a continuidade das reuniões, ele para de enviar os capítulos para os amigos. Quando todos pensam que Victor desistiu do livro, ele aparece com os originais do romance. E nada mais será como antes…

Durante todo o livro, Sidney Garambone cita filmes e usa a voz dos personagens para falar um pouco de cada um. O que é uma atração à parte, pois o romance se torna um “recomendador” de bons filmes, digamos assim. Além disso, o protagonista e narrador faz reflexões sobre o ato de escrever uma obra de ficção e ainda encontra tempo para destilar sua ironia em comentários sobre política e sociedade.

Outra característica que faz de “Eu, Deus” um livro peculiar é a forma como Garambone o escreve. Sem frescuras ou pedantismo. Ele chega a brincar com a nossa língua, mas não se deixa levar por invencionices baratas. Garambone não faz “gracinhas” com o português. Ele o usa de maneira consciente, sem querer imitar alguém ou ser o mais novo autor revolucionário do mercado.

Eis o que é “Eu, Deus”: um romance despretensioso, divertido e perturbador, sério e esculachado – no bom sentido –, que faz o leitor refletir e rir. Um dos melhores livros que li este ano, sem sombra de dúvida. E, com certeza, o que mais gostei de ler, até agora.

* Resenha publicada originalmente em janeiro de 2007 no jornal Rascunho.

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