Em caso de felicidade

* Texto publicado originalmente no blog Ideias & Livros, do JB.

Diz-se que a felicidade pura não existe, que o máximo que podemos ter são momentos felizes. Tal premissa está tão impregnada em nós que chegamos a estranhar quando muitas coisas boas acontecem sucessivamente, durante um bom tempo. Quando isso ocorre, é comum pensarmos que, dentro em breve, algo de muito grave ou ruim vai acontecer, como se para compensar o período de boas novas – o que seria uma inversão do ditado “depois da tempestade, a bonança”.

O romance “Em caso de felicidade”, segundo livro do escritor francês David Foenkinos publicado no Brasil, parte desse pressuposto. Numa das primeiras páginas o narrador diz: “Ninguém sabia o que fazer em caso de felicidade. Havia seguro de vida,seguro para veículos e para morte ocorrida dentro de algum veículo. Mas quem nos protegerá da felicidade?”.

Mas o livro não é nem pretende ser um tratado romanesco sobre a felicidade. Longe disso. Se existe uma coisa que David Foenkinos não é, é pretensioso. Ao menos não aparenta ser. Suas histórias são simples e têm como objetivo principal entreter o leitor – se provocar uma ou outra reflexão, um tanto melhor, um escritor não pode se isentar disso. Mas a impressão que se tem ao ler seus livros é a de que ele deseja fazer com que esqueçamos um pouco as numerosas notícias desagradáveis dos noticiários e tenhamos alguns momentos de diversão e riso.

Seu primeiro romance publicado aqui, “O potencial erótico de minha mulher”, segue este mesmo caminho. Sua história pode ser resumida assim: Hector, um homem viciado em colecionar o que quer que seja, depois de passar por uma crise e tentar cometer suicídio, recupera-se, volta a ter uma vida normal, apaixona-se e se casa. Sua vida correria normalmente não fosse por um motivo: ele passa a colecionar os momentos em que sua esposa limpa os vidros da casa. É de um acontecimento banal e improvável que o protagonista perde o equilíbrio e retoma sua “mania” de coleção.

É o que também acontece neste “Em caso de felicidade”. Os problemas de Jean-Jacques, protagonista do romance, têm início de maneira pouco comum. Ele, um homem casado, que tem um bom emprego e uma linda filha, curvou-se à rotina. “Permitiu” que seus dias se tornassem mecânicos e que a paixão dos tempos de namoro e início de casamento por sua esposa arrefecesse. A contratação de Sonia, uma nova e sensual estagiária, era tudo o que faltava para Jean-Jacques pensar em cometer adultério. E ele não havia pensado seriamente nisso até Sonia se colocar no limiar entre sua sala e a ante-sala, onde ela ficava. Foi ali, com ela ocupando o lugar que deveria ser da porta fechada, que Jean-Jacques decidiu tentar conquistá-la. “Sua maneira de não entrar na sala criava quase que um clima de adultério. Ela tinha com as portas uma relação das mais eróticas.”

Jean-Jacques não vê outra saída senão ter um caso extraconjugal com Sonia. Sua esposa, Claire, não demora a perceber certas atitudes diferentes no marido e concluir que é muito provável que ele esteja lhe traindo. Para confirmar e ter provas de suas suspeitas, contrata um detetive particular para segui-lo. Em pouco tempo o adultério de Jean-Jacques é confirmado e Claire o deixa, transformando a vida do casal e também a de seus pais – os de Jean-Jacques morreram já há alguns anos –, um casal à moda antiga que tem mais problemas adormecidos e segredos do que se pode suspeitar. A partida repentina de Claire deixa seu marido sem rumo, atinge em cheio sua mãe – que vê a filha tomando uma atitude que ela não teve coragem de tomar décadas atrás – e também seu pai, que é acometido por um medo enorme de ser abandonado pela esposa.

Sozinho, Jean-Jacques começa a pensar que a esposa estava lhe traindo, afinal, que motivo ela teria para deixá-lo? Mas isso porque ele não imagina que a esposa saivá do seu caso extraconjugal. É quando ele resolve colocar um detetive particular para investigar Claire. O que se vê a partir daí é uma comédia de erros, encontros e desencontros que só seria possível surgir da mente de Foenkinos. Uma história original, mas, talvez justamente por isso, nem tanto (em “O potencial erótico de minha mulher” ele diz “tudo que é original, é tudo menos original”), que termina de maneira se não surpreendente, ao menos pouco convencional.

No meio de toda essa comédia romântica, algumas frases do narrador são dignas de nota e grifo, como “Há pessoas formidáveis que encontramos no momento errado em nossa vida” ou “O que estimula todos os nossos avanços tecnológicos é o adultério: criou-se a internet, o celular, criaram-se as mensagens por telefone unicamente para que todos os casais possam viver com facilidade as suas vidas paralelas. (…) Está tão minado o terreno da fidelidade que a questão, para os casais, não mais é saber se o outro o trai mas sim com quem o outro o trai.”.

Brincando com o meio corporativo, quando diz que, após os atentados de 11 de setembro os chefões das empresas, até então acomodados nos últimos andares dos grandes edifícios, resolveram ocupar os primeiros andares e deixarem o topo para a “arraia-miúda”, e com as situações vividas por qualquer casal, como aquele terrível momento em que se está jantando com a parceira e surge do nada um vendedor de flores – ela quer que você compre as flores ou achará brega você fazer isso? –, além de fazer constantes referências ao cinema – principalmente a “Asas do desejo”, de Wim Wenders – David Foenkinos dá à literatura uma bela, tocante e divertida obra que vai de encontro à sisudez, à seriedade e às pretensões exacerbadas dos jovens escritores contemporâneos. Pode-se dizer que “Em caso de felicidade” proporciona, por que não, bons momentos de felicidade, e boas lembranças também. É um livro para ter sempre por perto, e reler sempre que ela, a felicidade, estiver nos dando uns dias de folga.

This entry was posted in Resenhas. Bookmark the permalink. Post a comment or leave a trackback: Trackback URL.

3 Comments