Desamarrando nós

* Continho escrito há muito tempo, mais ou menos uns 6 anos.

O dia não avisou que estava vindo. Somente quando olhei para fora e vi o clarear do fim da madrugada foi que ouvi galos cantarem ao longe.

Não sei que motivo leva algumas pessoas a manter galos em casa numa cidade que se diz moderna. Sabia apenas que aquela seria minha última noite naquele lugar. Não dormi, mas acordei com vontade de mudar.

Apesar do cansaço do dia anterior, uma quarta-feira, estava muito disposto e não sentia necessidade de descansar. Pelo contrário. Não via a hora de poder sair de casa, ir ao escritório pedir demissão e à faculdade trancar a matrícula do curso de filosofia que estava na metade.

Depois, seria a hora de comunicar a meus pais que estaria saindo da cidade. O mais difícil a fazer.

Tinha plena consciência do que aconteceria. Ambos ficariam perplexos. Meu pai, irritadíssimo, perguntaria se eu estava louco e o que eu estava pensando da vida. Minha mãe começaria a chorar, olharia para o teto e perguntaria a Deus se foi para isso que havia me criado, o que fizera de errado e coisas desse tipo.

Enquanto eles faziam isso, eu iria até meu quarto buscar a mala que deixara pronta e diria a eles que ligaria assim que chegasse em algum lugar. Os nós que me mantinham ali seriam facilmente desamarrados.

Além do trabalho e da faculdade – os quais eram dispensáveis para mim naquele momento – havia os amigos e a família. Estes fariam falta, mas eu poderia carregá-los no coração e na mente para onde quer que eu fosse. O mesmo eu não poderia dizer do meu suposto amor. Deixá-la não seria muito difícil. Seria até um alívio para nós dois. Nossa relação de quase um ano estava desgastada havia muito. Precisaria vê-la com urgência. Ligaria marcando um encontro. Na rodoviária, talvez. Não seria tão difícil.

Ficaria surpresa com aquela imagem: eu, uma mala e, minutos depois, um ônibus. Não precisaria de muitas palavras. Diria que nossa relação estava muito complicada e que seria melhor terminarmos enquanto ainda existia respeito mútuo. Ela me faria algumas perguntas, eu as responderia, diria que estava “cheio de tudo e de todos”. E só. Lhe desejaria o melhor e prometeria mandar notícias em breve – uma pequena mentira não mata ninguém.

Deitado aqui, na minha cama, imagino se teria mesmo coragem de fazer tudo isso.

Mas a preguiça de levantar me faz seriamente pensar em finalmente dormir, mesmo com um belo dia nascendo lá fora…

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