Um dos maiores méritos da novela “Comédia em tom menor” (Companhia das Letras, 120 páginas, tradução de Luiz Antônio de Araújo), do escritor alemão Hans Keilson (1909-2011), é não ser nem sentimental, nem cruel, apesar de ter a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto como pano de fundo.
Isso porque, apesar dos temas espinhosos, Keilson escolheu não fazer um panorama da guerra ou um relato do sofrimento imposto aos judeus pelos nazistas alemães. Preferiu contar uma história simples, de forma simples, sem apelar para o emocional ou exagerar na crueldade.
A história: Wim e Marie, um jovem casal alemão, se dispõe a abrigar – esconder – em sua residência um judeu de nome Nico. Tal procedimento não era comum, devido ao risco que os anfitriões corriam, mas também não era raro naqueles anos, como deixa explícito o narrador.
Nico vive com o casal durante cerca de um ano. Nesse ínterim, mal sai de casa, só o fazendo à noite, em dias de lua nova, quando a noite fica mais escura. É nesse aspecto, aliás, que o autor concentra parte de suas atenções: na agonia de Nico vivendo clandestinamente, estando livre e, ao mesmo tempo, sendo uma espécie de prisioneiro. Um sentimento que o autor conhecia muito bem, pois ele passou por situação semelhante na década de 1940.
“No dia em que entrou naquela casa, teria aceitado de bom grado um lugarzinho na pilha de carvão no depósito, dar-se-ia por satisfeito. Agora dormia em uma cama, comia a uma mesa, era tratado como gente.
No entanto, quanto mais o tempo passava, mais aumentavam suas exigências. Como ele nada podia reivindicar do mundo exterior – tudo quanto recebia era de mão beijada, quase de presente –, suas exigências se voltavam para dentro e exorbitavam. Porém, recebia ajuda, sim, eles o ajudavam, sim, isso não valia nada? Sim, significava muito. E não valia nada. Reduzia-o a nada. Era insuportável. Representava o seu aniquilamento, o seu aniquilamento humano, ainda que – talvez – lhe salvasse a pele. O espinhozinho que em todos brota escondido, que vive da ajuda e da compaixão alheias, agigantava-se, transformava-se em uma lança cravada profundamente na carne, e doía.”
Quase um ano depois de sua chegada, Nico morre. Fica-se sabendo disso nas primeiras páginas do livro, que mescla a ação do tempo presente com a narrativa do tempo passado feita por um narrador onisciente. Mas que, apesar disso, não dá ao leitor todos os detalhes de uma só vez. O faz pouco a pouco, como que para conservar alguns mistérios.
Com a morte de Nico, o casal ganha mais um problema: como se livrar do corpo? Para isso, contam com a ajuda de um médico, dr. Nelis, que vinha cuidando do morto em suas últimas semanas de vida – Nico adoecera, seu estado de saúde se agravara muito rápido e o casal foi obrigado a procurar um médico.
Wim e dr. Nelis conseguem realizar a tarefa com sucesso, não fosse por um pequeno detalhe. Detalhe esse que dá, além do tom de comédia, muito sutil, também contornos angustiantes e tensos nas últimas páginas do livro.
Apesar de curto, “Comédia em tom menor” tem vários aspectos dignos de elogios, além dos já apontados: o retrato do sofrimento de Marie com a morte de Nico – ela foi quem mais se aproximou do judeu; a prosa simples e direta de Hans Keilson; a forma como o autor narra a história, mesclando o tempo das ações, mas de uma maneira habilíssima, sem causar nenhum tipo de confusão para o leitor.
Primeira obra de Hans Keilson publicada no Brasil, “Comédia em tom menor” não chega a ser uma obra-prima, mas, devido à sua delicadeza e peculiaridade, é um livro que merece ser lido e recomendado.
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