É possível que minha vida tome um rumo diferente do que eu estava planejando para os próximos meses. Por conta disso, tenho pensado muito em Bandini, Arturo Bandini. E em John Fante. E em Eduardo Marciano, também. E no grande e sábio Fernando Sabino.
(Sabino, Fante, me ajudem, por favor.)
Abaixo, uma resenha antiga, de “Pergunte ao pó”, de John Fante. Uma das piores que já escrevi, mas uma das mais sinceras e apaixonadas.
Arturo Bandini é um jovem americano descendente de italianos que mora em Los Angeles num quarto de hotel simples, muito simples, e que não tem um tostão no bolso.
“Uma noite, eu estava sentado na cama do meu quarto de hotel, em Bunker Hill, bem no meio de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida, porque eu precisava tomar uma decisão quanto ao hotel. Ou eu pagava ou eu saía: era o que dizia o bilhete, o bilhete que a senhoria havia colocado debaixo da minha porta. Um grande problema, que merecia atenção aguda. Eu o resolvi apagando a luz e indo para a cama.”
O trecho acima entre aspas é o primeiro parágrafo do romance “Pergunte ao pó” (José Olympio, 208 págs.), do escritor americano John Fante (1909-1983). É complicado falar de um livro tão importante e tão vibrante. “Pergunte ao pó” é venerado por milhares de leitores em todo o mundo. Um de seus admiradores mais famosos é o também escritor Charles Bukowski (1920-1994). Ele escreveu, em 1980, um prefácio para o livro, que faria parte das edições publicadas a partir daquele ano. Ele está presente na nova edição que tenho em mãos, a 6ª, e quase me fez chorar. Resolvi então reproduzir algumas linhas escritas por Bukowski:
“Então, um dia, puxei um livro e o abri, e lá estava. Fiquei parado de pé por um momento, lendo. Como um homem que encontrara ouro no lixão da cidade, levei o livro para uma mesa. As linhas rolavam facilmente através da página, havia um fluxo. Cada linha tinha sua própria energia e era seguida por outra como ela. A própria substância de cada linha dava uma forma à página, uma sensação de algo entalhado ali. E aqui, finalmente, estava um homem que não tinha medo da emoção. O humor e a dor entrelaçados a uma soberba simplicidade. O começo daquele livro foi um milagre arrebatador e enorme para mim.”
Mas, como eu dizia, Arturo Bandini vive em Los Angeles, para onde se mudou com o objetivo de tornar-se um grande escritor (isso eu não tinha dito).
Em suas andanças pela cidade empoeirada (em várias passagens Bandini diz que tudo está coberto por pó), ele conhece Camilla Lopez, uma bela mexicana, garçonete de um bar. Seu primeiro contato com ela não é lá muito amigável. Ela lhe serve um café, que “era um café muito ruim”. E Bandini, que não tem papas na língua, termina por ofender Camilla. E ela a ele. Isso é uma constante em seus encontros. Sim, porque eles se encontram várias vezes. Bandini passa a ir ao bar com alguma freqüência, apenas para ver – e ofender – Camilla.
As ofensas quase sempre são impensadas. Resultado do temperamento tempestuoso do aspirante a escritor. E essas ofensas sempre são motivos de arrependimento. Bandini ama Camilla, e tem raiva disso. E essa raiva é o que o faz destratá-la. Ele pensa ser superior à mexicana. Mas, no fundo, sabe que ambos são iguais; o sobrenome “não-americano”, a origem pobre, o preconceito que eles enfrentam. O romance se passa na década de 30. Se ainda hoje existe preconceito em relação aos latino-americanos nos EUA, imagine naquela época? Bandini só foi aceito no hotel depois de muito insistir, e de mostrar um exemplar da revista que havia publicado um conto seu, “O cachorrinho riu”. Segundo ele, “uma história que você não consegue parar de ler, e não era sobre um cachorro: uma história inteligente, de gritante poesia.” Pode-se ver que a modéstia não é o forte de Arturo Bandini.
Na verdade, Bandini é atormentado pelo fantasma do que ele quer ser, que contrasta com o homem que ele é. Quer ser um escritor rico e famoso, mas tudo o que tem são algumas poucas roupas velhas, uma máquina de escrever e um único conto publicado em uma revista. Ninguém o conhece, ninguém à sua volta se interessa por sua carreira literária. Bandini quer amar muitas mulheres, mas tem medo delas. Tem medo de Camilla, tem medo de Vera Rivken (uma misteriosa mulher com quem tem um “caso”), e até de uma prostituta que lhe oferece seus serviços.
Arturo resolve escrever uma carta ao editor da revista que publicara “O cachorrinho riu”, contando seus problemas e suas angústias. Para sua sorte, o editor publica sua carta, retirando apenas a saudação e o final dela, como se fosse um conto.
“Caro sr. Bandini: Com seu consentimento vou tirar a saudação e o final de sua longa carta e publicá-la como um conto em minha revista. Parece-me que o senhor fez um belo trabalho aqui. Acho que ‘As colinas distantes perdidas’ daria um excelente título. Meu cheque está em anexo. Sinceramente, J.C. Hackmuth”.
Depois disso é que ele conhece Vera. E ela desaparece da vida de Bandini da mesma forma que apareceu, muito rapidamente. Mas ela é a responsável pela sua grande virada como escritor: Bandini escreve um romance sobre a vida de Vera Rivken. Que é aceito e publicado por Hackmuth. O leitor precisa ter cuidado ao chegar nessa parte do livro. Pois pode correr o risco de comemorar o contrato de Bandini como se estivesse comemorando um título de copa do mundo.
“O milagre aconteceu. Aconteceu assim: eu estava de pé à janela do meu quarto, observando um percevejo que rastejava ao longo do peitoril. Eram três e quinze de uma tarde de quinta-feira. Ouvi baterem à porta. Abri e lá estava ele, um estafeta dos telégrafos. Assinei o recibo, sentei-me na cama e pensei se o vinho finalmente acabara com o coração do Velho. O telegrama dizia: seu livro aceito enviando contrato hoje. Hackmuth. Era tudo. Deixei o papel flutuar até o tapete. Fiquei sentado ali. Então abaixei-me até o chão e comecei a beijar o telegrama. Rastejei para baixo da cama e simplesmente fiquei ali. Não precisava mais da luz do sol. Nem da terra, nem do céu. Simplesmente fiquei ali, feliz de morrer. Nada mais podia acontecer a mim. Minha vida havia terminado.”
Mas não, não havia terminado. “Arturo Bandini, o romancista. Com renda própria, feita escrevendo contos”, não se sentia completo. Camilla, a mulher que ele tanto desejava, amava outro homem. Um homem estranho, doente e que não a amava. Ou amava? Bandini tenta, a todo custo, trazer Camilla para perto de si. Mas não é fácil conquistar o amor de uma mulher. Ainda mais quando ela ama um outro homem.
Passei muito tempo querendo ler “Pergunte ao pó”. A vontade veio quando li um trecho do prefácio de Bukowski. Por uma série de motivos, não pude lê-lo na época. Foi até melhor assim. O romance é impressionante, em todos os sentidos. O jovem que eu era há 4 ou 5 anos talvez não estivesse preparado para ele. Mas agora sei e entendo porque “Pergunte ao pó” é um livro tão querido e tão importante, e continua influenciando e emocionando seus leitores até os dias de hoje.
* Publicada originalmente no blog Paralelos.
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